Estamos passando por um momento atípico. Quando você decidiu comprar aquele apartamento em fase de construção anos ou meses atrás, jamais imaginaria que hoje, março de 2020, estaríamos passando por esta grande pandemia.
Hoje a situação no Brasil não está uniformizada, cada município tem tomado decisões de acordo com orientações dos estados. Além disso, não temos nada além de recomendações em âmbito federal.
Fato é que, com medidas contra a crise uniformizadas ou não, com a sua obra parada ou com os peões continuando no trabalho, o país está em grande desaceleração econômica e comercial. Inevitavelmente, isso afetará a entrega do seu empreendimento.
E agora?
Existe alguma previsão legal sobre o atraso da entrega da obra?
O artigo 393 do Código Civil dispõe:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
O artigo acima mencionado está localizado no título "Do inadimplemento das obrigações". Entretanto, compreenda que a CONSTRUTORA possui uma obrigação com cada um dos COMPRADORES das unidades imobiliárias que vendeu ainda no momento da obra. Assim, o construtor não poderá se valer a qualquer tempo ou motivo do art. 393 do Código Civil. É necessário que de fato a obra tenha sofrido um período totalmente atípico e inesperado entre o seu início e o seu fim.
Muitas vezes o artigo acima foi utilizado para justificar atrasos de obras e assim não obrigar o construtor ao pagamento de multa por descumprimento de alguma das cláusulas do contrato, em específico da cláusula em que ele prometeu uma data certa para a entrega da obra.
Neste sentido, vejamos uma decisão recente (16/10/2019) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Farei um breve resumo do caso e te explicarei como o Tribunal de Justiça decidiu a questão:
Alessandro e Júlia compraram um apartamento da construtora CEU na cidade de Niterói/RJ. No contrato ficou pactuada a entrega do empreendimento em 30/04/2012, sendo que ainda havia a previsão de um possível atraso de 120 dias. Hoje chamamos este prazo de "tolerância".
Prazo de tolerância é aquele em que o construtor pode atrasar a obra e este atraso não acarreta qualquer penalidade para ele.
O apartamento foi entregue aos compradores no dia 17/12/2012, sendo assim 3 meses após a data limite de entrega da unidade.
Os compradores entraram como uma ação judicial pleiteando danos materiais e morais em face da construtora por conta do atraso da entrega da obra. Tanto o juiz de primeira instância como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgaram exatamente da mesma forma. Vou transcrever aqui trechos relevantes da decisão:
“Também digno de menção que a ocorrência de caso fortuito ou de força maior rompe o nexo causal entre o dano e a conduta do agente, excluindo a responsabilidade deste.”
“Ocorre que o empreendimento em questão está situado em Niterói, sendo que à época de sua realização, o Município sofreu com as fortes chuvas ocorridas em abril de 2010, que causaram diversos estragos na cidade, inclusive com a tragédia do morro do Bumba, como aliás bem salientado na douta sentença. Como é cediço, tais problemas e a tragédia mencionada acarretaram a decretação de Estado de Calamidade Pública no Município de Niterói.”
Perceba que não bastaria apenas uma defesa da construtora falando que "choveu demais" ou "não estávamos preparados para tanta chuva", pelo que se pode ler na decisão, o que aconteceu em abril de 2010 na cidade de Niterói foi realmente algo muito além do previsível, tanto que houve decretação de estado de calamidade pública.
Inclusive o julgador deixa isso muito claro no seguinte trecho:
“Também consabido, que a mera ocorrência de chuvas – ainda que torrenciais – por si só, não se mostra suficiente para elidir a responsabilidade da construtora por eventual atraso na entrega do imóvel, porém, as chuvas ocorridas em abril de 2010 no município de Niterói ultrapassaram em muito o limite tolerável, ocasionado a tragédia e que afetou a cidade por inteiro, não somente a região circunjacente ao Morro do Bumba. Tanto que assim o é, que houve a decretação de Estado de Calamidade Pública, que abrangeu todo o município, o que resultou em dificuldades operacionais na construção do empreendimento objeto do litígio.”
Leia a decisão do tribunal na íntegra. Clique AQUI
O que estamos vivendo hoje no mundo vai ainda além do que aconteceu com Niterói em abril de 2010. Como já dito, estamos diante de uma desaceleração econômica que fatalmente causará atraso nas obras em todo o país.
A pandemia é um fato externo à atividade do construtor e que causa danos inevitáveis para a empresa, sendo que, nestes casos, o atraso não pode ser considerado culpa do construtor para força-lo assim ao pagamento de qualquer multa ou indenização. É possível e provável que a empresa já esteja suportando prejuízos grandes por conta dos fatos.
Obviamente que não só construtoras suportarão prejuízos, toda a sociedade segurará uma parte do peso dos fatos. E no caso em questão, acredito que os julgadores que enfrentarão fatos de atraso de entrega das unidades imobiliárias que estavam sendo construídas em época de coronavírus decidirão por não fazer o construtor suportar o peso de indenizações e multas, sempre compreendendo que o atraso deverá ser proporcional ao período que enfrentarmos.
Cabe aqui lembrar que a cláusula de "caso fortuito e força maior" é muito importante nos contratos de compra e venda de unidade imobiliária em fase de construção e não deve ser esquecida, mas que a ausência dela não significará o dever ou não de indenização em casos de alto impacto na região.
Vou deixar aqui um modelo de cláusula de caso fortuito e força maior:
Cláusula X. Como previsto no artigo 393 do Código Civil, o construtor não responde pelo atraso da obra causado em virtude da ocorrência de eventos comprovadamente caracterizados como caso fortuito ou força maior.
Parágrafo Único. Entende-se por caso fortuito ou de força maior, o fato cujos efeitos ou resultados não foram possíveis de serem evitados ou impedidos pelo construtor. Entende-se também como caso fortuito ou força maior os casos em que o Município, Estado ou União declaram estado de calamidade, de emergência ou qualquer outro decreto similar.
Espero que o conteúdo tenha sido esclarecedor e te ajudado a pensar e analisar o nosso atual cenário.
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